Alocução de Allan Kardec aos Espíritas de Bruxelas e Antuérpia
Publicamos esta
alocução a pedido de grande número de pessoas que nos
testemunharam o desejo de conservá-la, e
porque ela tende a fazer considerar o Espiritismo sob
um aspecto de certo modo novo. A Revista
Espírita de Antuérpia reproduziu-a integralmente.
Senhores e caros irmãos espíritas,
Apraz-me dar-vos este título, porque,
embora eu não tenha o privilégio de conhecer todas
as pessoas presentes nesta reunião,
quero crer que aqui estamos em família e todos em
comunhão de pensamentos e de
sentimentos. Mesmo admitindo que nem todos os assistentes
fossem simpáticos às nossas idéias, não
os confundiria menos no sentimento fraterno que deve
animar os verdadeiros espíritas para com
todos os homens, sem distinção de opinião.
Não obstante, é aos nossos irmãos de
crença que me dirijo mais especialmente, para
exprimir-lhes a satisfação que sinto de
me achar entre eles e de oferecer-lhes, em nome da
Sociedade de Paris, a saudação de
fraternidade espírita.
Eu já havia tido a prova de que o
Espiritismo conta, nesta cidade, numerosos adeptos
sérios, devotados e esclarecidos,
compreendendo perfeitamente o objetivo moral e filosófico da
Doutrina; sabia que aqui encontraria
corações simpáticos, e isto foi motivo determinante para
que eu correspondesse ao insistente e
grato convite que me foi feito por vários dentre vós, de
aqui fazer uma pequena visita este ano.
A acolhida tão amável e cordial que recebi fará que leve
de minha estada a mais agradável
lembrança.
Certamente eu teria o direito de
envaidecer-me pela acolhida que me tem sido dispensada
nos diferentes centros que visito, se
não soubesse que esses testemunhos se dirigem muito
menos ao homem do que à Doutrina, da
qual sou humilde representante, e devem ser
consideradas como uma profissão de fé,
uma adesão aos nossos princípios. É assim que os
encaro, no que me concerne pessoalmente.
Aliás, se as viagens que faço de vez em
quando aos centros espíritas só devessem ter
como resultado a satisfação pessoal, eu
as consideraria inúteis e delas me absteria. Mas, além de
contribuírem para estreitar os laços de
fraternidade entre os adeptos, também têm a vantagem de
fornecer-me elementos de observação e de
estudo, jamais perdidos para a Doutrina.
Independentemente dos fatos que possam
servir ao progresso da Ciência, aí recolho os materiais
da história futura do Espiritismo, os
documentos autênticos sobre o movimento da idéia espírita,
os elementos mais ou menos favoráveis ou
contrários que ela encontra, conforme as localidades,
a força ou a fraqueza e as manobras de
seus adversários, os meios de combater estes últimos, o
zelo e o devotamento de seus verdadeiros
defensores.
Entre estes últimos, devem colocar-se em
posição de destaque todos os que militam pela
causa com coragem, perseverança,
abnegação e desinteresse, sem segunda intenção pessoal, que
buscam o triunfo da doutrina pela
doutrina, e não pela satisfação de seu amor-próprio; enfim,
aqueles que, por seu exemplo, provam que
a moral espírita não é uma palavra vã, e se esforçam
por justificar esta notável afirmação de
um incrédulo: Com uma tal doutrina, não se pode ser
espírita sem ser homem
de bem.
Não há centro espírita onde eu não tenha
encontrado um número mais ou menos grande
desses pioneiros da obra, desses
arroteadores de terreno, desses lutadores infatigáveis que,
sustentados por uma fé sincera e
esclarecida, pela consciência de cumprir um dever, não
desanimam ante nenhuma dificuldade,
encarando seu devotamento como dívida de
reconhecimento pelos benefícios morais
que receberam do Espiritismo. É justo fiquem perdidos
para os nossos descendentes os nomes
daqueles de que se honra a Doutrina e que um dia não
possam ser inscritos no panteão
espírita?
Infelizmente, ao lado destes por vezes
se acham pessoas de má índole, os impacientes da
causa, que, não calculando o alcance de
suas palavras e de seus atos, podem comprometê-la; os
que, por zelo irrefletido, por idéias
intempestivas e prematuras, sem o querer fornecem armas
aos nossos adversários. Depois vêm
aqueles que, não considerando o Espiritismo senão pela
superfície, sem serem tocados no
coração, por seu próprio exemplo dão uma falsa idéia de seus
resultados e de suas tendências morais.
Eis aí, sem sombra de dúvida, o maior
escolho com que se deparam os sinceros
propagadores da Doutrina, pois muitas
vezes vêem a obra, que tão penosamente esboçaram,
desfeita justamente por aqueles que os
deveriam secundar. Está provado que o Espiritismo é
mais entravado pelos que o compreendem
mal do que pelos que não o compreendem
absolutamente, e, mesmo, pelos inimigos
declarados. E é de notar que os que o compreendem
mal geralmente têm a pretensão de o
compreender melhor que os outros; e não é raro ver
neófitos que, ao cabo de alguns meses,
pretendem dar lições àqueles que adquiriram experiência
em estudos sérios. Tal pretensão, que
denuncia o orgulho, é uma prova evidente da ignorância
dos verdadeiros princípios da Doutrina.
Contudo, que os espíritas sinceros não
desanimem: é o resultado do momento de transição
por que vivemos. As idéias novas não
podem estabelecer-se de repente e sem obstáculos; como
lhes é preciso varrer as idéias antigas,
forçosamente encontram adversários que as combatem e
as repelem, sem falar nas criaturas que
as tomam em sentido contrário, que as exageram ou
desejam acomodá-las a seus gostos e
opiniões pessoais. Mas chega o momento em que as idéias
contraditórias caem por si mesmas, uma
vez conhecidos e compreendidos os verdadeiros
princípios pela maioria. Já vedes o que
sucedeu com todos os sistemas isolados, surgidos na
origem do Espiritismo; todos caíram ante
a observação mais rigorosa dos fatos, ou só ainda
encontram alguns desses partidários
tenazes que, em tudo, se aferram às suas idéias primitivas,
sem darem um passo à frente. A unidade
se fez na crença espírita com muito mais rapidez do
que se esperava. É que os Espíritos, em
todos os pontos, vieram confirmar os princípios
verdadeiros, de sorte que hoje, entre os
adeptos do mundo inteiro, há uma opinião predominante
que, se ainda não goza da unanimidade
absoluta, é, incontestavelmente, a da imensa maioria.
Donde se segue que aquele que quiser
marchar na contramão desta opinião, encontrando pouco
ou nenhum eco, condena-se ao isolamento.
Aí está a experiência para o demonstrar.
Para remediar o inconveniente que acabo
de assinalar, isto é, para prevenir as
conseqüências da ignorância e das falsas
interpretações, é preciso maior empenho na
vulgarização das idéias justas e na
formação de adeptos esclarecidos, cujo número crescente
neutralizará a influência das idéias
errôneas.
Minhas visitas aos centros espíritas,
naturalmente, têm por objetivo principal auxiliar os
nossos irmãos em crença em suas tarefas.
Assim, eu as aproveito para lhes dar instruções que
possam necessitar, como desenvolvimento
teórico ou aplicação prática da Doutrina, tanto quanto
me é possível fazê-lo. Como é sério o
fim dessas visitas, e exclusivamente no interesse da
Doutrina, não busco ovações, que nem são
do meu gosto, nem do meu caráter. Minha maior
satisfação é encontrar-me com amigos
sinceros, devotados, com os quais nos podemos entreter
sem constrangimento e esclarecer-nos
mutuamente, por uma discussão amistosa, em que cada
um traz o contributo de suas próprias
observações.
Nessas excursões não vou pregar aos
incrédulos; jamais convoco o público para
catequizá-lo, pois não vou fazer
propaganda; só compareço a reuniões de adeptos nas quais
meus conselhos são desejados e possam
ser úteis; eu os dou de bom grado aos que julgam deles
necessitar; abstenho-me com os que se
julgam bastante esclarecidos para os dispensar. Numa
palavra, só me dirijo aos homens de boa
vontade.
Se, excepcionalmente, se insinuassem
nessas reuniões pessoas atraídas somente pela
curiosidade, ficariam desapontadas,
porquanto aí nada encontrariam que as pudesse satisfazer; e,
caso estivessem animadas de sentimento
hostil ou desabonador, o caráter eminentemente grave,
sincero e moral da assembléia e dos
assuntos nela tratados tiraria qualquer pretexto plausível
para a sua malevolência. Tais são os
pensamentos que exprimo nas diversas reuniões às quais
sou chamado para assistir, a fim de que
não se equivoquem quanto às minhas intenções.
Afirmei no início que eu não era senão o
representante da Doutrina. Algumas explicações
sobre o seu verdadeiro caráter
naturalmente chamarão vossa atenção para um ponto essencial
que, até agora, não foi considerado
suficientemente. Na verdade, vendo a rapidez dos progressos
desta Doutrina, haveria mais glória em
dizer-me seu criador; meu amor-próprio aí encontraria o
seu salário; mas não devo fazer minha
parte maior do que ela é; longe de o lamentar, eu me
felicito, porque, então, a Doutrina não
passaria de uma concepção individual, que poderia ser
mais ou menos justa, mais ou menos
engenhosa, mas que, por isso mesmo, perderia sua
autoridade. Poderia ter partidários,
talvez fizesse escola, como muitas outras, mas certamente
não teria adquirido, em alguns anos, o
caráter de universalidade que a distingue.
Eis um fato capital, senhores, que deve
ser proclamado bem alto. Não, o Espiritismo não é
uma concepção individual, um produto da
imaginação; não é uma teoria, um sistema inventado
para a necessidade de uma causa; tem sua
fonte nos fatos da própria Natureza, em fatos
positivos, que se produzem a cada
instante sob os nossos olhos, mas cuja origem não se
suspeitava. É, pois, resultado da
observação; numa palavra, uma ciência: a ciência das relações
entre o mundo visível e o mundo
invisível; ciência ainda imperfeita, mas que se completa todos
os dias por novos estudos e que, tende
certeza, ocupará o seu lugar ao lado das ciências positivas.
Digo positivas, porque toda
ciência que repousa sobre fatos é uma ciência positiva, e não
puramente especulativa.
O Espiritismo nada inventou, porque não
se inventa o que está na Natureza. Newton não
inventou a lei da gravitação; esta lei
universal existia antes dele. Cada um a aplicava e lhe sentia
os efeitos, embora não a conhecessem.
O Espiritismo, por sua vez, vem mostrar
uma nova lei, uma nova força da Natureza: a que
reside na ação do Espírito sobre a
matéria, lei tão universal quanto a da gravitação e da
eletricidade, conquanto ainda
desconhecida e negada por certas pessoas, como o foram todas as
outras leis na época de suas
descobertas. E que os homens geralmente têm dificuldade em
renunciar às suas idéias preconcebidas
e, por amor-próprio, custa-lhes reconhecer que estavam
enganados, ou que outros tenham podido
encontrar o que eles mesmos não encontraram.
Mas, em última análise, como esta lei
repousa sobre fatos, e contra os fatos não há
negação que possa prevalecer, terão de
render-se à evidência, como os mais recalcitrantes o
fizeram quanto ao movimento da Terra, à
formação do globo e aos efeitos do vapor. Por mais
que acusem os fenômenos de ridículos,
não podem impedir a existência daquilo que é.
Assim, o Espiritismo procurou a
explicação dos fenômenos de uma certa ordem e que, em
todos os tempos, se produziram de
maneira espontânea. Mas, sobretudo, o que o favoreceu
nessas pesquisas é que lhe foi dado, até
certo ponto, o poder de produzi-los e de provocá-los.
Encontrou nos médiuns instrumentos
adequados a tal efeito, como o físico encontrou na pilha e
na máquina elétrica os meios de
reproduzir os efeitos do raio. E fácil compreender que isto não
passa de uma comparação; não pretendo
estabelecer uma analogia.
Mas há aqui uma consideração de alta
importância: é que, em suas pesquisas, ele não
procedeu por via de hipóteses, como o
acusam; não supôs a existência do mundo espiritual para
explicar os fenômenos que tinha sob as
vistas; procedeu por meio da análise e da observação;
dos fatos remontou à
causa e o elemento espiritual se lhe apresentou como força ativa; só o
proclamou depois de
havê-lo constatado.
Como força e como lei da Natureza, a
ação do elemento espiritual abre, assim, novos
horizontes à Ciência, dando-lhe a chave
de uma imensidão de problemas incompreendidos. Mas,
se a descoberta de leis puramente
materiais produziu revoluções materiais no mundo, a do
elemento espiritual nele prepara uma
revolução moral, pois muda totalmente o curso das idéias e
das crenças mais arraigadas; mostra a
vida sob outro aspecto; mata a superstição e o fanatismo;
desenvolve o pensamento, e o homem, em
vez de arrastar-se na matéria, de circunscrever sua
vida entre o nascimento e a morte,
eleva-se ao infinito; sabe donde vem e para onde vai; vê um
objetivo para o seu trabalho, para os
seus esforços, uma razão de ser para o bem; sabe que nada
do que adquire na Terra, em saber e
moralidade, lhe é perdido, e que seu progresso continua
indefinidamente no além-túmulo; sabe que
há sempre um futuro para si, sejam quais forem a
insuficiência e a brevidade da
existência presente, ao passo que a idéia materialista,
circunscrevendo a vida à existência
atual, dá-lhe como perspectiva o nada, que não tem por
compensação sequer a duração, que
ninguém pode aumentar à vontade, já que podemos cair
amanhã, em uma hora, e então o fruto dos
nossos labores, de nossas vigílias, dos conhecimentos
adquiridos estarão para nós perdidos
para sempre, muitas vezes sem termos tido tempo de
desfrutá-los.
O Espiritismo, repito, ao demonstrar,
não por hipótese, mas por fatos, a existência do
mundo invisível e o futuro que nos
aguarda, muda completamente o curso das idéias; dá ao
homem a força moral, a coragem e a
resignação, porque não mais trabalha apenas pelo presente,
mas pelo futuro; sabe que se não gozar
hoje, gozará amanhã. Demonstrando a ação do elemento
espiritual sobre o mundo material,
amplia o domínio da Ciência e, por isto mesmo, abre nova via
ao progresso material. Então terá o
homem uma base sólida para o estabelecimento da ordem
moral na Terra; compreenderá melhor a
solidariedade que existe entre os seres deste mundo, já
que esta solidariedade se perpetua
indefinidamente; a fraternidade deixa de ser palavra vã; ela
mata o egoísmo, em vez de por ele ser
morta e, muito naturalmente, o homem imbuído destas
idéias a elas conformará suas leis e
suas instituições sociais.
O Espiritismo conduz inevitavelmente a
esta reforma. Assim, pela força das coisas,
realizar-se-á a revolução moral que deve
transformar a Humanidade e mudar a face do mundo, e
isto tão-só pelo conhecimento de uma
nova lei da Natureza, que dá outro curso às idéias, uma
finalidade a esta vida, um objetivo às
aspirações do futuro, fazendo encarar as coisas de outro
ponto de vista.
Se os detratores do Espiritismo - falo
dos que militam pelo progresso social, dos escritores
que pregam a emancipação dos povos, a
liberdade, a fraternidade e a reforma dos abusos -
conhecessem as verdadeiras tendências do
Espiritismo, seu alcance e seus inevitáveis resultados,
em vez de ridicularizá-lo, como fazem,
de interpor incessantemente obstáculos no seu caminho,
nele vissem a mais poderosa alavanca
para chegar à destruição dos abusos que combatem, em
vez de lhe serem hostis, o aclamariam
como um socorro providencial. Infelizmente, na sua
maioria, crêem mais em si do que na
Providência. Mas a alavanca age sem eles e a despeito
deles, e a força irresistível do
Espiritismo será tanto mais bem constatada quanto mais ele tiver
de combater. Um dia dirão deles, o que
não será para a sua glória, o que eles próprios dizem dos
que combateram o movimento da Terra e
dos que negaram a força do vapor. Todas as negações,
todas as perseguições não impediram que
estas leis naturais seguissem seu curso, assim como os
sarcasmos da incredulidade não impedirão
a ação do elemento espiritual, que é, também, uma lei
da Natureza.
Considerado desta maneira, o Espiritismo
perde o caráter de misticismo que lhe censuram
os detratores, justamente aqueles que
menos o conhecem. Não é mais a ciência do maravilhoso e
do sobrenatural ressuscitada: é o domínio da natureza enriquecida por uma lei nova e fecunda,
uma prova a mais do poder e da sabedoria
do Criador; são, enfim, os limites recuados dos
conhecimentos humanos.
Tal é, em resumo, senhores, o ponto de
vista sob o qual se deve encarar o Espiritismo.
Nesta circunstância, qual foi o meu
papel? Nem o de inventor, nem o de criador. Vi, observei,
estudei os fatos com cuidado e
perseverança; coordenei-os e lhes deduzi as conseqüências: eis
toda a parte que me cabe. Aquilo que
fiz, outro poderia ter feito em meu lugar. Em tudo isto fui
simples instrumento dos pontos de vista
da Providência, e dou graças a Deus e aos bons
Espíritos por se terem dignado servir-se
de mim. É uma tarefa que aceitei com alegria, e da qual
me esforcei por tornar-me digno, pedindo
a Deus me desse as forças necessárias para realizá-la
segundo a sua santa vontade. No entanto,
a tarefa é pesada, mais pesada do que possam imaginála;
e se tem para mim algum mérito, é que tenho
a consciência de não haver recuado perante
nenhum obstáculo e nenhum sacrifício.
Será a obra da minha vida até meu último dia, porque, na
presença de um objetivo tão importante,
todos os interesses materiais e pessoais se apagam
como pontos diante do infinito.
Termino esta alocução, senhores,
dirigindo sinceras felicitações aos nossos irmãos da
Bélgica, presentes ou ausentes, cujo
zelo, devotamento e perseverança contribuíram para a
implantação do Espiritismo neste país.
Estou convicto de que as sementes plantadas nos grandes
centros de população, como Bruxelas,
Antuérpia, etc, não foram lançadas em solo estéril.
(REVISTA
ESPÍRITA, NOVEMBRO DE 1864,
ED. FEB, P. 429-438.)
Viagem Espírita
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